Aprendi muitas coisas com o Tchekhov neste último ano. Li um conto por dia durante muitos dias – e a vida ficou povoada de russos antigos: de cocheiros tristes, funcionários constrangidos, soldados incolores, meninos entediados viajando na poeira quente da estepe, solteiros convictos, casados frustrados, senhoras que amam sinceramente, senhoras que tentam amar e não conseguem, pintoras ambiciosas, atrizes sem talento, professores de chapéu e guarda-chuva, médicos impotentes. Ando na rua e às vezes reconheço algum desses, passando por mim com os olhos baixos, tímido por ter chegado assim de repente aqui, direto da Moscou do século 19.
Anton Tchekhov era médico e gostava muito de cachorros. E como não gostar de alguém que gosta tanto de cachorros? Janet Malcolm diz que o conto “Kaschtanka”, sobre uma cachorrinha adotada por um treinador de circo, é o mais perto que Tchekhov já chegou de escrever uma autobiografia: ele faz uma fábula estranha toda narrada do ponto de vista da cachorrinha cor de castanha, que se perdeu do dono e foi levada a viver uma vida que não é a dela, assim como ele mesmo foi levado a viver uma vida que não era a dele. É contando a história da Kaschtanka que ele elabora a própria história. Acho que Tchekhov se reconhecia nos bichos mais do que nas pessoas – tinha dois dachsunds, e dizia que eles “adoravam chorar por excesso de sentimentos”. Toda noite ele conversava meia hora com um, meia hora com outro, e depois eles iam todos dormir no mesmo quarto. Tinham “patas tortas, torsos longos”, e eram “incomumente inteligentes”. E só uma pessoa incomumente inteligente pode perceber de verdade a inteligência incomum de um cachorro.
Mas Tchekhov era médico – e médico de pessoas. Ele dizia que a medicina era a sua esposa (ele que só foi de fato se casar pouco antes de morrer), enquanto a literatura era sua amante. E ele se tornou pra mim o exemplo do que deve ser um verdadeiro bom médico: russo, sábio e lindo. Não tão preocupado em curar as pessoas, até porque essa não era bem a questão da medicina naquela época: entender de uma doença não significava ser capaz de curar essa doença. É imensa a quantidade de contos do Tchekhov em que os personagens morrem – arrisco dizer que são poucos aqueles em que ninguém morre. Às vezes são mortes até grandiosas, mas muitas vezes são por motivos absolutamente idiotas, como quando o funcionário morre de constrangimento porque, ao espirrar, borrifou a careca de um general no meio da ópera. Seja por que for, os médicos russos do século 19 estavam mais acostumados a ver as pessoas morrerem do que se curarem; e acho mesmo que o trabalho principal do médico nem era exatamente curar. O trabalho do bom médico era saber olhar as pessoas e perceber do que elas precisavam; era chegar numa cidadezinha no meio do nada e reconhecer que ali as pessoas tinham problemas parecidos com os problemas de outras pessoas, de outras cidadezinhas, no meio de outros nadas; o bom médico sabia prestar atenção nos detalhes, nos gestos estranhos, na expressão dos olhos, no movimento das mãos, como um detetive gentil, um feiticeiro profundo; ele olhava o mundo de fora e percebia que as pessoas são todas muito parecidas, que todas elas sofrem de uma mesma coisa, mas que ao mesmo tempo cada pessoa é única, porque manifesta à sua maneira particular aquilo do que sofre; o bom médico por isso sabia precisamente o que dizer e como dizer e quando dizer.
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No livro Meninas (toda hora penso nesse livro), da nossa russa contemporânea Liudmila Ulítskaia, que se passa uns cinquenta anos depois da morte de Tchekhov, na Rússia de meados do século 20, um médico vai atender as irmãs gêmeas Victoria e Gayané:
“Por ocasião de um resfriado das meninas, chamaram à casa o velho doutor Iúli Solomónovitch, daquela estirpe de médicos extinta aproximadamente na mesma época que a vaca-marinha-de-steller. A presença desse tipo de médico acalma, o som de sua voz faz a temperatura baixar, e em sua arte, por vezes sem que nem eles saibam, estão mescladas gotas de antiga feitiçaria.”
A vaca-marinha-de-steller, extinta no final do século 17 – dizem que o último exemplar da espécie foi caçado em 1768, ou seja, quase cem anos antes do Tchekhov nascer.
Quando o doutor Iúli Slomónovitch chega na casa, a mãe das meninas oferece uma bandeja de chá e biscoitinhos de nozes; ele faz tinir a colherzinha e elogia os biscoitos, “como se não prestasse atenção nas meninas” (adoro esse detalhe). O doutor conversa com a mãe e na verdade já está atentíssimo, percebe rigorosamente a presença das meninas que ele vai atender; mas ainda não olha para elas, ainda não deixa que elas percebam que ele as percebe. Então, só depois disso, ele “esfrega longamente as mãos rosadas, como antes de uma intervenção cirúrgica”, e “enxuga cuidadosamente as mãos com os dedos abertos”. Que cena perfeita. É claro que “a essa altura as meninas já não tiravam os olhos dele”.
O doutor Iúli Solomónovitch já era muito velho quando a mãe das meninas era uma criança – aí também dá pra notar sinais de antiga feitiçaria. Já Anton Tchekhov não chegou a ficar velho: ele morreu aos 44 anos. Mas seus amigos diziam que ele parecia sempre um pouco mais velho do que realmente era, e na verdade mais velho do que qualquer outra pessoa. Talvez a questão seja que o Tchekhov prestava tanta atenção no mundo que cada ano, para ele, durava o equivalente a muitos e muitos anos para uma pessoa comum. Ele vivia anos de cachorro – cada um valia por sete – e por isso não morreu jovem, e sim velhíssimo, centenário.
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Em Guerra e paz, outra menina está doente e precisa de um médico. Mas aqui nesse livro, que se passa no período das guerras napoleônicas no comecinho do século 19, ainda não havia Tchekhov nem muito menos o doutor Iúli Solomónovitch; muitos médicos vêm para tentar entender qual é a doença de Natacha, e nenhum consegue. Tolstói conclui que, mesmo que os médicos estejam preocupados em curar, mesmo que a sua função a princípio seja essa, a importância dos médicos na verdade é outra.
“Os médicos vinham examinar Natacha em comitiva ou individualmente, conversavam muito em francês, em alemão, em latim, criticavam uns aos outros, receitavam os remédios mais diversos, para todas as doenças que conheciam; mas não passava pela cabeça de nenhum deles a ideia tão simples de que não podiam conhecer a doença de que Natacha padecia, assim como não se pode conhecer nenhuma doença que afeta uma pessoa: cada pessoa tem as suas peculiaridades e sempre tem a sua doença própria, nova, complicada, desconhecida pela medicina, não uma doença dos pulmões, do fígado, da pele, do coração, dos nervos etc., catalogada pela medicina, mas uma doença que consiste numa das inúmeras combinações dos sofrimentos desses órgãos. Essa ideia simples não podia passar pela cabeça dos médicos (da mesma forma que não pode passar pela cabeça de um feiticeiro a ideia de que ele não pode lançar feitiços), porque o seu ofício era curar, porque era para isso que recebiam dinheiro, e porque haviam consumido os melhores anos da vida deles naquele negócio. O principal, porém, era que tal ideia não podia passar pela cabeça dos médicos porque eles viam que eram incontestavelmente úteis […] Eram úteis não porque obrigavam a paciente a ingerir substâncias em grande parte nocivas (o dano era pouco sensível, porque as substâncias nocivas eram dadas em quantidades pequenas), mas eles eram úteis, necessários, indispensáveis (essa é a razão por que existem e sempre existirão curandeiros imaginários, adivinhos, homeopatas e alopatas) porque satisfaziam uma necessidade moral da paciente e das pessoas que a amavam. Satisfaziam a eterna necessidade de solidariedade e de cuidado que sente uma pessoa na hora do sofrimento. Satisfaziam a eterna necessidade humana – que se nota numa criança, do modo mais elementar – de esfregar o lugar do machucado. A criança se fere e na mesma hora corre para os braços da mãe, da babá, para que beijem e esfreguem o lugar machucado, e obtém alívio, quando esfregam ou beijam o lugar machucado. A criança não acredita que pessoas mais fortes e mais sábias do que ela não tenham meios de aliviar a sua dor. A esperança de um alívio e a expressão de solidariedade na hora em que a mãe esfrega o seu galo consola a criança. Para Natacha, os médicos eram úteis porque beijavam e esfregavam o dodói, assegurando que logo ia passar, se o cocheiro fosse à farmácia na rua Arbat e trouxesse, em troca de um rublo e setenta copeques, um pozinho e umas pílulas dentro de uma caixinha bonita, e se aquele pozinho fosse tomado pela paciente de duas em duas horas impreterivelmente, nem mais, nem menos, junto com água fervida.”
Numa carta a um amigo, Tchekhov diz que está lendo Guerra e paz e que, se fosse ele quem estivesse tratando um personagem moribundo, sabe que teria sido capaz de curá-lo. “Como era atrasada a medicina naquele tempo! Enquanto escrevia seu romance, Tolstói, involuntariamente, deve ter-se impregnado de ódio pela medicina.”
Tchekhov e Tolstói conversando. Quer dizer: Tchekhov ouvindo, Tolstói falando – como não poderia ser diferente. A postura de escuta do Tchekhov nessa foto, aliás, é exatamente a que eu imagino que ele tinha também quando atendia um paciente.
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Lendo os cadernos de notas do Tchekhov, fica difícil decidir se ele se incomoda mais com os médicos, com as pessoas doentes ou com as pessoas casadas.
Z. vai a um médico, que o examina e descobre que ele sofre de uma doença cardíaca. Z. muda abruptamente seu modo de vida, toma remédios, só consegue falar sobre sua doença; a cidade inteira sabe que ele tem uma doença cardíaca e todos os médicos, que ele consulta regularmente, dizem que ele tem uma doença cardíaca. Ele não se casa, desiste de teatro amador, não bebe e, quando anda, o faz lentamente e mal respira. Onze anos depois, ele tem que ir a Moscou e lá ele consulta um especialista. Este último descobre que seu coração está perfeitamente são. Z. fica muito feliz, mas não consegue mais retornar a uma vida normal, pois se acostumou a ir para a cama cedo e a andar devagar, e fica entediado se não consegue falar sobre sua doença. O único resultado é que ele passa a odiar médicos, isso é tudo.
As pessoas adoram falar de suas doenças, embora essas sejam as coisas mais desinteressantes nas suas vidas.
Observei que depois do casamento as pessoas deixam de ser curiosas.
Um médico, recém-formado, supervisiona a comida em um restaurante. “A comida está sob a supervisão especial de um médico.” Ele copia a composição química da água mineral; os alunos acreditam nele e tudo fica bem.
Houve um aumento não no número de doenças nervosas e pacientes nervosos, mas no número de médicos capazes de estudar essas doenças.
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Tchekhov passou boa parte da vida convivendo com os sintomas da tuberculose, mas demorou para diagnosticar a doença. Até que morreu disso numa noite, numa cidadezinha na Alemanha, logo depois de beber uma taça de champanhe e dizer que fazia muito tempo que não bebia champanhe. Foi levado até Moscou num vagão de trem com a inscrição “ostras frescas”.
O funeral de Tchekhov, em julho de 1904. Mas dizem que houve um engano quando o corpo chegou
em Moscou e muita gente seguiu o caixão errado, de um certo general Keller.
Por último, um pequenino desvio da Rússia: outro sujeito humilde como Tchekhov que conviveu intimamente com a tuberculose como Tchekhov foi Manuel Bandeira. Passou a vida limpando a casa e pondo a mesa para receber a indesejada das gentes, que se anunciava, se anunciava e nunca chegava. Passou a vida tossindo, tendo febre, dispneia e suores noturnos. Os médicos (que não eram russos, até onde pude apurar) diagnosticavam: “uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado”.
Apesar das ameaças constantes dos médicos desde pequeno, apesar dos tantos tangos argentinos, Manuel Bandeira viveu até os 82 anos.
Sensacional!
Que texto incrível, Tchekhov contista espetacular