Essa noite a insônia veio. Fazia tempo que não vinha.
Inventei uma brincadeira.
Escolha pdfs de livros aleatórios (no meu caso é um estoque acho que maior do que o das estantes);
Abra o pdf;
Aperte ctrl+F;
Busque a palavra “dormir”.
Abaixo uma amostra das coisas que encontrei.
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“O Pequod agora atravessava a radiosa primavera de Quito, que no mar reina quase perpetuamente no limiar do eterno Agosto do Trópico. Os dias tépidos, frescos, límpidos, sonoros, perfumados, exuberantes e supérfluos eram como taças de cristais de sherbet da Pérsia, cobertas por flocos de neve de água de rosas. As majestosas noites estreladas pareciam mulheres altivas, vestidas de veludo e joias, cultivando em casa com seu orgulho solitário a memória de seus nobres conquistadores ausentes, os sóis de elmos de ouro! Para dormir, era duro escolher entre os dias encantadores e as noites tão sedutoras.”
Moby Dick, Herman Melville

Repetindo pra lembrar: dias tépidos, frescos, límpidos, sonoros, perfumados, exuberantes e supérfluos. Se eu repetir dez vezes, talvez fique com sono. Tépidos, frescos, límpidos, sonoros, perfumados, exuberantes e supérfluos. Como taças de cristal de sherbet da Pérsia. Cobertas por flocos de neve e água de rosas. Feliz a pessoa que repete todos os dias essas palavras em sequência. Taças de cristal de sherbet da Pérsia. Com certeza dorme bem. Água de rosas.
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“O paletó e a bolsa, jogados lá de baixo, caíram ao lado de Iégoruchka. Sem querer pensar em nada, ele pegou a bolsa depressa e colocou sob a cabeça, cobriu-se com o paletó e, depois de estender totalmente as pernas, encolheu-se por causa do orvalho e começou a rir de prazer.
‘Dormir, dormir, dormir…’, pensou.
– E vocês, seus demônios, tratem de não incomodar o menino! – ouviu-se a voz de Deniska, lá embaixo.”
A estepe: História de uma viagem, Anton Tchekhov

Imagina um menino tentando dormir numa noite no meio da Rússia.
Talvez seja essa a música que gira na sua cabeça:
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“Era um mundo todo azul, esse em que as meninas cresceram. No final de toda rua havia o mar, tão azul quanto os olhos delas – como tantas vezes lhes disseram. Por cima de suas cabeças, era tão raro o céu tornar-se sinistro ou cinza que dias assim eram aprazíveis pela própria novidade. Ocasionalmente, um vento mais forte trazia a agradável ferroada do sal e o ar estava sempre salgado. Quando pequenas, costumavam lamber o sal tanto dos próprios braços e mãos como dos da outra, num jogo que chamavam de ‘brincar de cachorrinho’. Os banhos antes de dormir eram sempre salgados, por isso precisavam enxaguar-se debaixo do chuveiro, com a água que vinha lá do fundo da terra e tinha gosto de minerais, não de sal.”
As avós, Doris Lessing

Lembrei que, adolescente, eu passava a maior parte das madrugadas acordada. Era o tempo quando o mundo ficava suspenso, quando as coisas eram possíveis, quando eu chegava finalmente dentro de mim mesma, traçando com os olhos o caminho entre os tijolos da parede do meu quarto – entrava numa espiral para onde os anos da minha vida (pareciam muitos) escorriam lentamente, e dizia: tudo vai com a água fria dos banhos da madrugada.
De repente era manhã. O dia ficava pálido e uns passarinhos surgiam: ali, aqui, um pouco mais perto. Como aquela imensidão de horas tinha se reduzido assim ao dia seguinte?
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“Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!
Como e por que me saiu este verso da cabeça, não sei; saiu assim, estando eu na cama, como uma exclamação solta, e, ao notar que tinha a medida do verso, pensei em compor com ele alguma cousa, um soneto. A insônia, musa de olhos arregalados, não me deixou dormir uma longa hora ou duas; as cócegas pediam-me unhas, e eu coçava-me com alma.”
Dom Casmurro, Machado de Assis

Às vezes os lençóis parece que se revoltam. Eles ganham vida própria, tornam-se pântanos, charcos, florestas. As dobras da superfície do edredon são o mapa topográfico de um país desconhecido. Coça-se a alma, com a alma.
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“Nossa geração é uma geração de homens. Não é uma geração de raposas e de lobos. Cada um de nós teria grande vontade de pousar a cabeça em algum lugar, cada um gostaria de ter uma pequena toca enxuta e aquecida. Mas não há paz para os filhos dos homens. Cada um de nós uma vez na vida se iludiu achando que podia dormir sobre qualquer coisa, apossar-se de uma certeza qualquer, de uma fé qualquer, e então repousar o corpo. Mas todas as certezas de antes nos foram arrancadas, e a fé jamais será algo em que enfim se possa mergulhar no sono.”
As pequenas virtudes, Natalia Ginzburg

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Em Na colônia penal, de Franz Kafka, não encontrei nenhuma ocorrência da palavra “dormir”.
Estou lendo cem anos de solidão e ainda no comecinho, quando Macondo é acometida pela insônia. Adorei essa edição e vou tentar me inscrever no seu curso. Um abraço
Que exercício interessante!